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Novos Aspectos da Patogenia da Tuberculose

Tuberculose?! Sim. Essa doença, tão antiga como a humanidade e que dispõe de tratamento disponível e altamente eficaz desde a década de 60, continua a ser um grande problema de saúde pública. Um terço da população mundial está infectado por Mycobacterium tuberculosis e em risco de desenvolver a doença (1). Segundo a Organização Mundial de Saúde, a taxa de incidência da tuberculose vem diminuindo desde 2002 em 1,3% ao ano. A estimativa de novos casos de tuberculose no mundo é de 8,8 milhões em 2010, equivalente a 128/100.000 habitantes. Desse total, 59%, 26%, 7%, 5% e 3%, respectivamente, estão na Ásia, África, região do Mediterrâneo, Europa e Américas (Figura 1). Entre 1 e 1,2 milhões de casos são de pessoas vivendo com HIV/AIDS. A África é responsável por 82% dos casos de coinfecção tuberculose/HIV no mundo (2). São responsáveis por 81% de todos os casos de tuberculose no mundo 22 países, sendo os cinco primeiros a Índia (um quarto dos casos), China, África do Sul, Indonésia e Paquistão.

O Brasil está em 17º lugar nesse ranking. Autoridades em saúde por todo o mundo têm se preocupado com a tuberculose. A Organização Mundial de Saúde declarou a tuberculose como emergência. sanitária mundial em 1993. A iniciativa chamada Stop TB veio a seguir, estabelecendo metas para 2005 (detecção de 70% e cura de 85% dos casos), para 2015 e para 2050 (Quadro 1). Em 2000, a Organização das Nações Unidas estabeleceu as “Metas do Milênio”, que
incluíram o controle da tuberculose até 2015.

A partir de 1981, o surgimento e a disseminação da AIDS mudaram o perfil epidemiológico da tuberculose, resultando no aumento da morbidade e da mortalidade em todo o mundo. A tuberculose e o HIV têm uma interação sinérgica, na qual cada um acentua a progressão do outro. A infecção por HIV é o maior fator de risco conhecido para o desenvolvimento de tuberculose ativa. Pessoas infectadas por HIV têm alto risco de progredir para tuberculose ativa a partir de um foco de infecção primária, assim como a partir da reativação da tuberculose latente. A infecção por HIV também aumenta o risco de subsequentes episódios de tuberculose por reinfecção exógena.

O risco anual estimado de reativação entre aqueles com infecção tuberculose/HIV é de 5-8%, com um risco acumulado ao longo da vida de 30%, quando comparados com adultos HIV negativos, cujo risco é de 5-10% (4,5). Nos países desenvolvidos, as pessoas idosas, as minorias étnicas e a população de imigrantes são os mais atingidos. Nos países em desenvolvimento, determinantes sociais de grandes centros urbanos, como pobreza, baixa escolaridade, situações de confinamento, pessoas vivendo em situação de rua, abuso de drogas e indivíduos marginalizados, com difícil acesso aos serviços de saúde, formam um grande grupo de indivíduos vulneráveis entre os quais a tuberculose circula, contribuindo para perpetuar a doença e a miséria.

Em outubro de 2011, a Conferência Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde, realizada no Rio de Janeiro, resultou na “Declaração do Rio”, que propõe a redução das iniquidades em saúde, pactuando ações globais sobre os determinantes sociais da saúde. Para tanto, o desenvolvimento global deve ser norteado por estratégias que contribuam para a redução da vulnerabilidade de grupos sociais e de países, adotando--se soluções e sinergias intersetoriais. Presente à conferência, o Ministro da Saúde do Brasil, Alexandre Padilha, citou a melhoria dos indicadores de saúde e a redução dos índices de tuberculose no país por conta dos investimentos do governo brasileiro na área social — saneamento, habitação e combate à fome. A estratégia denominada Saúde da Família vem cumprir um importante papel nessa missão, na medida em que se fundamenta nos eixos transversais da universalidade, integralidade e equidade em um contexto de descentralização e controle social. Dispõe-se hoje de 30.328 equipes em 5.251 municípios, com uma cobertura de 53,1% da população brasileira.

INTRODUÇÃO

A tuberculose é considerada uma prioridade do Ministério da Saúde do Brasil desde 2003 e é uma das cinco doenças mais em foco atualmente. Está presente no programa Mais Saúde, na Programação das Ações de Vigilância em Saúde, no Pacto pela Vida, entre outros.Está sendo discutida a inclusão da incidência de tuberculose como um indicador para o programa Brasil sem Miséria. O orçamento para o enfrentamento da tuberculose é 14 vezes maior daquele em 2002. Estima-se que 57 milhões de pessoas estejam infectadas por M. tuberculosis no Brasil. Anualmente, são notificados 85 mil casos, sendo 71 mil casos novos, com uma incidência de 37,2/100.000 habitantes. A tuberculose tem o dobro da incidência nos homens (49,6/100.00 habitantes) em relação às mulheres (24,6/100.000 habitantes). No Brasil, o grupo na faixa etária que vai dos 20 aos 49 anos é o mais atingido pela tuberculose, abrangendo em torno de 63% dos casos novos da doença registrados em 2009.

Nas populações mais vulneráveis, as taxas de incidência são maiores do que a média nacional da população geral. É duas vezes maior na população negra e quatro vezes maior na indígena. Na população carcerária, a taxa é 25 vezes maior e, entre os portadores de HIV, é 30 vezes maior. Na população vivendo em situação de rua, a taxa chega a ser 67 vezes maior (4,10-12). Quanto ao risco anual de desenvolvimento de tuberculose ativa, a desnutrição e o diabetes elevam o risco em 2-4 vezes, o uso de imunossupressores eleva o risco em 2-12 vezes, a silicose o aumenta em 8-34 vezes, e a infecção por HIV o aumenta em 50-100 vezes.

A população carcerária no Brasil conta com 470 mil presos, segundo dados de 2009. É composta, em sua grande maioria, de uma população jovem, negra ou parda, pobre e de baixa escolaridade. Considerando que esse número aumentou 103% em relação a 2001 e que o número de estabelecimentos prisionais cresceu 27%, pode-se deduzir daí a superlotação e as precárias condições de ventilação e iluminação dessas instituições, explicando a taxa de incidência da tuberculose no sistema penitenciário de 2.560/100.000 (3.532/100.000 em prisões do Rio de Janeiro). É interessante o fato de que apenas um terço dos doentes referia tosse por mais de três semanas e de que mais de 60% dos casos confirmados bacteriologicamente não apresentavam esse sintoma. A detecção precoce e ativa, baseada em exame radiológico, o tratamento e a melhoria das condições de encarceramento, aliados às estratégias de informação e sensibilização, são peças fundamentais para a diminuição da incidência da doença nos presídios. A solicitação de exames anti-HIV, conforme recomendado, alcançou a taxa de 70% em 2010, mas com apenas 45% efetivamente realizados. A taxa de coinfecção vem se mostrando estável ao longo dos anos, alcançando 11,8% em 2010. A cura dos casos de coinfecção tuberculose/HIV é praticamente a metade dos casos de tuberculose em pacientes HIV negativos, assim como o abandono é quase o dobro nos coinfectados.

A mortalidade assusta: 20% dos coinfectados morrem, sendo a mortalidade alta o fato que mais repercute na baixa taxa de cura. A tuberculose vem impondo grandes desafios de controle para uma doença tão antiga e conhecida. Ainda estamos distantes dos objetivos em relação à implantação do tratamento diretamente observado nos casos novos bacilíferos (42% em 2009), da avaliação dos contatos e da obrigatória solicitação de culturas nos casos de retratamento (apenas 24% em 2009). Pelas metas internacionais estabelecidas e pactuadas pelo governo brasileiro, deveriam ser diagnosticados 70% dos casos de tuberculose estimados e, desses, 85% deveriam ser curados. Em 2009, a média brasileira de cura foi de 71%, variando entre 59,7% e 85,5%. A média da taxa de cura das capitais brasileiras de casos novos em 2009 foi de 66,4%, com variações entre 53,8% e 92,7%. O número de óbitos em 2010 foi de 4.800, sendo a terceira causa de morte por doenças infecciosas e a primeira causa de morte entre os pacientes HIV positivos. A taxa de mortalidade é 3 vezes maior nos homens (3,8/100.000) que nas mulheres (1,3/100.000) atualmente.

ARTIGOS;

Epidemiologia da Tuberculose - Epidemiology of Tuberculosis
Raquel V. B. Piller

 


RESUMO


A tuberculose ainda é um grande problema de saúde pública e vem preocupando autoridades da área de saúde. Embora a taxa de incidência venha diminuindo, a mortalidade ainda é muito alta, principalmente nos casos de coinfecção tuberculose/HIV. A tuberculose está diretamente relacionada a determinantes sociais, fato que vem envolvendo os governos com ações intersetoriais para a redução da vulnerabilidade em saúde da população.


No Brasil, 57 milhões de pessoas estão infectadas pelo bacilo, com 71 mil casos novos em 2010 e uma incidência de 37,2/100.000 habitantes. O número de casos em homens é o dobro daquele em mulheres. Populações vulneráveis e vivendo em grandes cidades apresentam taxas de incidência maiores do que a média da população geral. Chama a atenção a população carcerária, com taxas 25 vezes maiores que a população geral, os portadores de HIV/AIDS, com taxas 30 vezes maiores, e indivíduos vivendo em ruas, com taxas 67 vezes maiores.


Com o aumento da cobertura da estratégia Saúde de Família, desenvolvendo ações de busca ativa, controle e tratamento da tuberculose, aliada a melhorias na rede laboratorial e a implantação de métodos diagnósticos rápidos, é possível visualizar um cenário favorável para a melhoria da atual situação epidemiológica da tuberculose. Descritores: Tuberculose/epidemiologia; Tuberculose/prevenção & controle; Atenção primária à saúde.

O município do Rio de Janeiro apresenta uma população de 6.320.446 habitantes, segundo dados de 2010. É uma cidade de muitos contrastes, com grandes bolsões de pobreza e aglomerados humanos. Tem uma incidência de tuberculose de
95,2/100.000 habitantes, em queda de 13% nos últimos 9 anos, ocupando o 4º lugar em incidência entre as capitais.
Foram notificados 7.741 casos de tuberculose em 2010, sendo que 6.083 foram casos novos. Aproximadamente 8% dos pacientes moram fora do município do Rio de Janeiro (9,13,14). A tuberculose ativa predomina no sexo masculino (67%) e atinge prioritariamente a faixa etária de 20 a 49 anos de idade. Cerca de 80% dos casos são pulmonares, e 20% são extrapulmonares. O indicador de cura de caso novo pulmonar positivo na atenção básica foi de 74% em 2009, e a proporção de baciloscopias realizadas no momento do diagnóstico em indivíduos maiores de 15 anos foi de 78,2% naquele ano. A taxa de mortalidade muito alta (6,2%) reflete o diagnóstico tardio. Avaliando-se as fontes notificadoras, verifica-se que 26% dos casos ainda são notificados em hospitais, quando esses casos deveriam ter sido detectados e tratados precocemente pela atenção básica .

Como exemplo bem sucedido de ação governamental e que implicou na redução dos índices de tuberculose, a comunidade da Rocinha (localizada no bairro de São Conrado), cuja taxa de incidência era de 621/100.000 habitantes em 2002, obteve uma redução para 380/100.000 habitantes em 2009 como consequência das intervenções locais, como a implantação da estratégia de tratamento diretamente observado num modelo baseado no programa Agentes Comunitários de Saúde, com a busca ativa de casos. Outro exemplo diz respeito à coinfecção tuberculose/HIV. O estudo denominado “Tuberculose e HIV no Rio” (THRio), a partir de 2005, fez incrementar ações para reduzir a tuberculose nessa população através da realização de testes tuberculínicos, do tratamento da infecção latente com isoniazida, da triagem para tuberculose ativa em casos recém-diagnosticados de HIV e do aumento da realização de cultura de escarro, inclusive utilizando métodos automatizados, como o BACTEC MGIT 960 System (Becton Dickinson, Sparks, MD, EUA).

Tanto a parte retrospectiva do estudo como a prospectiva mostraram a capacidade da terapia antirretroviral e da isoniazida em reduzir a tuberculose entre os pacientes HIV positivos. O Quadro 2 mostra os riscos relativos ajustados para a tuberculose em pacientes HIV positivos. O Programa Nacional de Controle da Tuberculose está propondo medidas urgentes para reduzir a morbidade e a mortalidade da coinfecção tuberculose/HIV: agilidade no diagnóstico com a implantação de testes rápidos anti-HIV tão logo se faça o diagnóstico de tuberculose, o início da terapia antiretroviral em até 8 semanas do diagnóstico (independente do valor de CD4), o reforço da recomendação de tratamento da tuberculose latente nas pessoas vivendo com HIV/AIDS e a implementação de indicadores para a avaliação e o monitoramento da coinfecção.

A TUBERCULOSE NO BRASIL

A TUBERCULOSE NO RIO DE JANEIRO

Há mais de uma centena de espécies de micobactérias. No entanto, poucas são patogênicas para o homem. Entender, portanto, o que leva uma espécie a ser patogênica tem grande importância para a compreensão da tuberculose. O desenvolvimento nos últimos 20 anos das ferramentas de biologia molecular permitiu o sequenciamento integral de diversas espécies de micobactérias de patogenicidade diferentes, como M. leprae e o próprio M. tuberculosis.

A comparação do genoma dessas duas espécies evidenciou que o M. leprae perdeu, ao longo da evolução, centenas de
genes em comparação com o M. tuberculosis, já que possui um genoma com 3,27 milhões de pares de bases, contra 4,41 milhões do M. tuberculosis. Essa perda de genes resultou em uma patogenicidade diferenciada para o homem e em formas clínicas bastante diversas da tuberculose e da hanseníase. O caso do M. bovis também é ilustrativo desse ponto. Na década de 1910, os cientistas franceses Albert Calmette e Camille Guérin iniciaram experimentos em busca de uma vacina contra a tuberculose.

Para isso, fizeram centenas de passagens de cepas de M. bovis em meio de cultura com bile até obterem uma cepa que se mostrou pouco patogênica e capaz de proteger crianças contra formas graves da doença, que ficou conhecida com vacina BCG. Recentemente, o sequenciamento do genoma do BCG demonstrou que as sucessivas passagens levaram à perda de mais algumas centenas de genes, em regiões conhecidas como regiões de diferenciação, sendo a mais importante a região de diferenciação presente no M. bovis e ausente no BCG, diminuindo, assim, a patogenicidade da espécie consideravelmente, sem, contudo, impedir o desenvolvimento de uma robusta resposta imune, que também protege contra formas graves de tuberculose. O sequenciamento do genoma do M. tuberculosis permitiu a realização de investigações sobre o papel de genes até então desconhecidos, através da genômica funcional. A identificação de genes presentes em cepas patogênicas de M. tuberculosis, como H27Rv, mas ausentes em cepas menos patogênicas, como o BCG, ou não patogênicas, como o M. smegmatis, permitiu a maior compreensão da patogenia da tuberculose, com aplicações inovadoras.

É o caso da proteína early secretory antigenic target-6 (ESAT-6), que apresenta atividade citolítica para pneumócitos, facilitando a invasividade do M. tuberculosis. Sua presença em micobactérias patogênicas e sua ausência no BCG permitiu o desenvolvimento de testes diagnósticos, como o QuantiFERON®-TB Gold In-Tube (Cellestis Ltd., Melbourne, Austrália), que consiste em um teste de liberação de IFN-γ por linfócitos T de memória quando estimulados in vitro por ESAT-6 e culture filtrate protein (CFP)-10. O teste é útil na identificação de infecção tuberculosa latente mesmo em vacinados com BCG. Outra aplicação é em vacinologia, com a inserção de sua sequência em vetores, como o próprio BCG, em busca de uma vacina mais robusta contra formas de tuberculose não influenciadas pelo BCG, como a tuberculose pulmonar. Presente apenas no complexo M. tuberculosis, a CFP-32 aumenta a secreção de IL-10 por células mononucleares. Há uma correlação positiva entre a presença de CFP-32 no escarro induzido em portadores de tuberculose e os níveis de IL-10, mas não em relação aos níveis de IFN-γ.

A tuberculose se transmite de pessoa a pessoa, sem vetores ou outros intermediários. A perpetuação da tuberculose se dá a partir do portador de tuberculose com doença pulmonar ativa (muitas vezes cavitária) para o contato sadio (normalmente alguém do seu convívio próximo) através da transmissão aérea por aerossol produzido por tosse, espirro ou fala, contendo nos núcleos sólidos ou nos núcleos de Wells uma ou duas micobactérias infectantes. No entanto, devido à sua permanente exposição aos potenciais insultos presentes no ar que respiramos, o aparelho respiratório
desenvolveu, ao longo da evolução, mecanismos​ inespecíficos de contenção, como a depuração mucociliar. Esses mecanismos permitem que grande parte dos bacilos aspirados seja contida na porta de entrada. Adicionalmente, os poucos bacilos que escapam dessa barreira física de contenção enfrentam os mecanismos alveolares, sendo a fagocitose pelos macrófagos alveolares o mais importante.

Se lograrem escapar desses poderosos mecanismos, os bacilos entram em multiplicação, constituindo o cancro de inoculação ou complexo de Gohn, a partir do qual se faz a disseminação linfática e a inflamação do gânglio regional, constituindo o chamado complexo primário. A partir da disseminação por via sanguínea, bacilos se instalam em outros órgãos até o surgimento, de duas a três semanas após o evento inicial, da imunidade adquirida ou adaptativa, na qual a resposta de defesa é especificamente dirigida contra componentes do agente agressor, no caso, o M. tuberculosis. A cooperação entre macrófagos e linfócitos T funciona como um elemento chave na defesa contra a infecção por M. tuberculosis. Nada exemplifica melhor isso que a enorme suscetibilidade de portadores da infecção pelo HIV à tuberculose, devido à disfunção das células T, particularmente CD4+. Os macrófagos e as células dendríticas fagocitam o M. tuberculosis e, depois de destruir e processar seus componentes, apresentam aos linfócitos seus principais antígenos no contexto de moléculas do complexo principal de histocompatibilidade tipos I e II.

Essas células ainda usam, para a apresentação antigênica, importantes moléculas de superfície, chamadas moléculas coestimulatórias, como CD80 e CD86. A apresentação antigênica precipita uma cascata de eventos biológicos nos linfócitos, como a ativação, a expansão clonal e a secreção de importantes citocinas (por exemplo, IFN-γ) que, por sua vez, vão ativar outros macrófagos, permitindo que eles sejam mais eficazes na eliminação do M. tuberculosis. Entretanto, os macrófagos têm também uma função menos nobre: a de abrigar os bacilos e de permitir sua multiplicação intracelular, protegendo-os dos mecanismos externos de eliminação e levando o indivíduo ao estado de tuberculose latente ou ao de tuberculose ativa progressiva. Os macrófagos utilizam diversos mecanismos para tentar eliminar o M. tuberculosis de seu interior, como a apoptose ou morte programada, que permitirá sua eliminação para o meio extracelular, assim como a fagocitose por outros macrófagos mais ativados.

Esses lançam mão de um aumento da expressão de enzimas, como a inducible nitric oxide synthase (iNOS), que secreta o radical livre óxido nítrico, altamente tóxico para o M. tuberculosis. Os linfócitos T CD4+ e CD8+ desempenham um
papel fundamental na imunidade protetora contra o M. tuberculosis. As células T CD4+ auxiliares secretam citocinas essenciais para a eliminação do M. tuberculosis, enquanto as células T CD8+ citotóxicas têm um efeito citolítico direto contra o M. tuberculosis, através
de grânulos citotóxicos contendo perforina que, juntamente com a granzima, produzem poros na membrana celular, além de também secretarem citocinas. As células T CD4+ são divididas em vários tipos, de acordo com o padrão de citocinas que secretam. As células Th1 secretam IL-2, IL-12, IL-18, TNF-α, TNF-β e IFN-γ. As células Th2 secretam IL-4, IL-5, IL-6, IL-9, IL-10 e IL-13, que induzem a diferenciação de linfócitos B, responsáveis pela imunidade humoral, além de regular negativamente a resposta Th1.

As células Th17 produzem IL-17 e IL-23 e estão envolvidas na regulação da reposta imune, cujo papel na tuberculose ainda está em investigação (12). Outra citocina fundamental tanto na proteção quanto na patogenicidade da tuberculose é o TNF-α, secretado por vários tipos celulares, principalmente por macrófagos ativados. Essa citocina é essencial na formação do granuloma, local onde as ações biológicas da tuberculose se produzem. Um dos achados mais contundentes da infecção pelo HIV é a incapacidade do organismo em formar granulomas completos, com a consequente presença de necrose caseosa mais volumosa e um grande número de bacilos dispersos em seu interior, contribuindo para a disseminação da doença. Sua inativação, através do uso consagrado de antagonistas do TNF-α, levou a um aumento considerável do risco de reativação da tuberculose latente. Por outro lado, a citocina tem um efeito pró-inflamatório muito intenso, contribuindo para as alterações sistêmicas vistas na tuberculose, e a frequência aumentada de linfócitos T CD4+ secretores de TNF-α é um preditor forte de desenvolvimento de doença ativa.

Mecanismos de Defesa do Hospedeiro Contra a Micobactéria

INTERAÇÃO MICOBACTÉRIA-HOSPEDEIRO

Há evidências de que mecanismos de defesa contra as micobactérias sejam afetados durante o desenvolvimento da tuberculose ativa, um fenômeno induzido pela micobactéria em si e que funcionaria como um mecanismo de escape. O desequilíbrio na produção de citocinas responsáveis pela ativação e desativação de macrófagos pode ser um dos mecanismos possíveis para esse fenômeno. Lisados de células obtidas por LBA de pulmões afetados por tuberculose mostram uma expressão de mRNA de citocinas que acionam a ativação de macrófagos (IL-2 e IFN-γ). No mesmo local, foi visto ocorrer a expressão de outras citocinas (IL-4 e IL-10) que poderiam agir como desativadoras das funções bactericidas de macrófagos. Nos mesmos lisados, foi verificada a expressão dos receptores tipo I (RI) e tipo II (RII) para TGF-β, que poderia tornar os macrófagos sensíveis à ação desativadora do ligante.

Além disso, no sobrenadante do LBA, havia uma grande quantidade do ligante funcionalmente ativo desses receptores. A presença de IL-10 no sítio da infecção pelo M. tuberculosis parece facilitar a evolução para a doença ativa, provavelmente pela supressão dos mecanismos protetores contra a tuberculose. Em outro estudo, os níveis de expressão de genes com atividade imune mediadora no momento do diagnóstico e durante o tratamento antituberculose foram quantificados em material pulmonar de portadores de tuberculose. Casos de tuberculose pulmonar ativa apresentaram níveis significativamente mais elevados de mediadores que prejudicam a imunidade do tipo Th1 e inata, incluindo mediadores intracelulares, como suppressor of cytokine signaling (SOCS1) e interleukin-1 receptor-associated kinase M (IRAK-M), e extracelulares (IL-10, TGF-β RII, IL-1RN e indoleamine 2,3-dioxygenase). Esses moduladores são uma resposta direta ao M. tuberculosis, já que, após 30 dias de tratamento antituberculose, muitos fatores com atividade supressora declinaram para os níveis exibidos pelos controles sem tuberculose, enquanto a maioria dos mediadores Th1 e de imunidade inata subiram acima dos níveis exibidos antes do tratamento.

A consequência da expressão elevada de SOCS1, IRAK-M e toll-like receptor 2 (TLR2), assim como de potentes supressores solúveis da ativação dos macrófagos, como IL-10 e TGF-β, pode resultar em menor atividade microbicida, como se deduz pela presença de menos de 30% de macrófagos das áreas de lesão que expressaram a enzima iNOS, envolvida no mecanismo de destruição de micobactérias em modelos murinos (18). Lago et al. estabeleceram uma correlação entre altos níveis de IL-10 ao final de tratamento antituberculose e recidiva da doença ao longo de avaliação, apontando um possível nexo entre esta citocina anti-inflamatória e o risco de recaída por tuberculose.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A patogenia da tuberculose é um processo complexo que envolve tanto o agente etiológico como os mecanismos de defesa do hospedeiro.

Os novos instrumentos de biologia molecular permitiram grandes avanços na compreensão da epidemiologia da doença, na identificação de possíveis alvos farmacológicos e de moléculas que podem ser usadas no diagnóstico das diversas fases da infecção, assim como no entendimento dos mecanismos imunitários básicos e como o M. tuberculosis os manipula a seu favor no estabelecimento e manutenção da infecção e da doença.

Em um recente documento da Organização Mundial da Saúde, destaca-se a necessidade de mais pesquisas relacionadas à patogenia da tuberculose para permitir maiores avanços no controle da enfermidade

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​Resumo


Este artigo visa abordar alguns aspectos históricos da representação simbólica da luta contra a tuberculose, através da análise de duas representações simbólicas, separadas por mais de cem anos, e por diversas mudanças na concepção, população atingida e formas de enfrentamento da doença: a Cruz de Lorena e o Catavento. Para isto se reportou aspectos históricos dos dois modelos, os ligado as realidades epidemiológicas de suas determinadas épocas e aos contextos inseridos. Percebe-se que os modelos sofrem deficiência em sua consolidação de ação comunicativa, principalmente por não considerarem o contexto maior da estratégia pretendida, limitando-se ao ocasional ou ao campanhismo.

Autor: Liandro Lindner

Da Cruz de Lorena ao catavento: análise sobre as representações
simbólicas e iconográficas na luta contra a tuberculose

Ao longo do tempo se utilizou a estratégia de criar símbolos nas campanhas massivas relacionando-os contra causa de adesão a algumas patologias. No decorrer do século XX esta ação teve maior destaque, sobretudo na luta contra a Aids com a adoção do laço vermelho, em 1987 pela Assembleia Mundial de Saúde com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). O laço vermelho é visto como símbolo de solidariedade e de comprometimento na luta contra a Aids Seu projeto foi criado em 1991 pela Visual Aids, grupo de profissionais de arte, de Nova York, que queria homenagear amigos e colegas mortos em decorrência da Aids O adereço foi escolhido pela sua associação ao sangue e à idéia de paixão e foi inspirado no laço amarelo que honrava os soldados americanos da Guerra do Golfo. O símbolo foi usado publicamente, pela primeira vez, pelo ator Jeremy Irons, na cerimônia de entrega do prêmio Tony Awards, em 1991.


Oitenta cinco anos antes, em outubro de 1902, na Conferência Internacional de Tuberculose, em Berlim (Alemanha) o médico francês Gilbert Sersiron, secretário-geral da Federação das Associações francesas contra a Tuberculose, propôs a adoção da Cruz de Lorena (anexo 1) como insígnia internacional da luta contra a tuberculose. A escolha inspirou-se no modelo utilizado pelo Duque de Lorena Godofredo de Bulhões, em 1087, na Primeira Cruzada para Jerusalém.

O Duque foi o primeiro Patriarca de Jerusalém, no ano de 1100. Na França, a Cruz de Lorena também é considerada como o símbolo de Joana D'Arc na luta contra os invasores estrangeiros. A cor vermelha, o fundo amarelo, e as dimensões da cruz foram padronizadas a partir de 1923 e em 1928, o Conselho da União Internacional contra a Tuberculose (UNION) recomendou a adoção do modelo da dupla cruz como símbolo mundial da luta contra a Tuberculose, na VII Conferência Internacional realizada em Roma. A própria UNION também usou este símbolo como seu logotipo a partir do momento da sua criação oficial até 2002, quando foi alterado utilizando apenas a cruz estilizada, sem o fundo amarelo, mas vários membros deste fórum ainda fazem uso da cruz em sua papelaria para mostrar que eles são parte desta “cruzada internacional".

Em 2008, setenta anos depois, por iniciativa de um dos receptores do projeto brasileiro de tuberculose, patrocinado pelo Fundo Global de Aids, Tuberculose e Malaria se cria, dentro de uma estratégia de comunicação -um dos componentes do projeto, a figura do catavento (anexo 2) como elemento simbólico contra a tuberculose. O componente de comunicação do projeto esta sobre a responsabilidade da Fiotec (Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde) receptor da maior parte dos recursos que, por sua vez, contratou uma empresa de publicidade para desenvolvimento desta campanha. Enquanto a Cruz de Lorena se ligava a ideia de “jornada de luta“ o catavento brasileiro procura se conectar com a noção de movimento, tanto do ar que evita a proliferação do bacilo como das ideias em torno da mobilização social que movimentam o enfrentamento desta realidade. A análise das duas representações, Cruz e Catavento, demonstram ideias diferentes do que seria uma mobilização social contra a tuberculose, ilustrando não apenas a resposta que a ciência e a sociedade em geral dão a esta questão, mas também uma indicação da época em que ambas as representações são propostas. Alie-se a isto a importante mudança do perfil da população atingida pela doença e do imaginário social que se cria ao redor de duas manifestações.


Do ponto de vista da comunicação a utilização de estratégias midiáticas para campanhas na área de saúde tem sido cada vez maior, sobretudo, oriundas- da área governamental. Além de criação de peças convencionais de campanha ( cartazes, folders, panfletos etc) se incrementam a produção de outros conteúdos envolvendo tecnologias de áudio e vídeo ( TV, rádio, cinema, mensagens por celular etc) e, mais recentemente, se utilizam ferramentas do mundo virtual (comunidades virtuais, blogs, twitter etc). No entanto, a adoção de um logotipo, uma imagem que remeta a ideia que se esta trabalhando nas campanhas voltadas a saúde tem sido muito restrita.

Segundo a lei brasileira, marca é “todo sinal distintivo, visualmente perceptível, que identifica e distingue produtos e serviços de outros análogos, de procedência diversa, bem como certifica a conformidade dos mesmos com determinadas normas ou especificações técnicas”. Símbolos são representações gráficas da marca e logotipos são a representação tipográfica destas marcas. As áreas de publicidade das empresas em geral se empenham na criação de marcas, símbolos e logos que ganhem espaço no imaginário da população e, consequentemente, se transformem em ações de consumo, compra e lucro para seus clientes. No entanto, em ações de saúde pública o objetivo não é o lucro, mas a multiplicação de informação e a mudança de comportamento visando minimizar os efeitos de uma determinada epidemia, ou patologia, sobre a população em geral ou populações específicas conforme o caso. No caso da tuberculose, ao contrário do que acontece com a Aids, os símbolos utilizados ainda são pouco conhecidos, e sua criação não partiu de instâncias de governo, mas foram criações externas adotas parcialmente por alguns setores governamentais, sobretudo nos municípios e estados. Além disto, se observa que a “ nova ideia” que se quis dar a mobilização a partir da adoção do catavento ainda é recente carecendo de maior divulgação, sobretudo no seu conceito.

A Cruz de Lorena e a cruzada contra a Tuberculose

Eu sou um parágrafo. Clique aqui para adicionar o seu próprio texto e editar-me. Sou um ótimo lugar para que você conte sua história e para que seus visitantes saibam um pouco mais sobre você. A cruz dupla tem representações encontradas desde a pré-história. Alguns autores interpretam sua configuração como, o braço vertical que é um meridiano e localiza o Norte e o Sul; a barra horizontal mais curta representa o solstício de inverno, e a mais longa, o de verão; o conjunto simboliza, portanto, o percurso do sol durante um ano.

É em Jerusalém que se identificam os primeiros vestígios da cruz dupla. Desde o século IV é sob a forma da cruz dupla que são representadas as relíquias da Cruz Verdadeira utilizada na Paixão de Cristo, re-encontrada por Santa Helena sobre o Monte das Oliveiras. Esta representação foi adotada porque seria o símbolo do poder dos Patriarcas de Jerusalém, guardiões da Cruz Verdadeira. A mesma figura se encontra sobre todos os túmulos de Patriarcas, de Byzance até o Monte Athos, em Attica e a partir dessa região difundiu-se na Rússia, onde foi chamada “Cruz Russa” e na Hungria, onde se tornou “Cruz de Hungria”, passando a ser um emblema da realeza. A Cruz de Lorena simbolizava que os Duques de Lorena eram duplamente cristãos: por serem príncipes de um Estado cristão e como os conquistadores de Jerusalém.


A insígnia da Cruz de Lorena é o símbolo da França Livre. Em 1871, a Alemanha anexou os territórios franceses da Alsácia e da Lorena e, para evidenciar a sua posição, os habitantes da Lorena adotaram como símbolo, a cruz de duas traves. Em 1940, após a convocação do General de Gaulle
para a luta contra o nazismo, o Vice-Almirante Emile Henry Muselier, natural da Lorena, considerando a cruz dupla como o mais apropriado símbolo da França contra a cruz gamada pagã, propõe a sua adoção como emblema da França Livre, tornando-a o símbolo da resistência francesa. No mesmo ano de 1940 criou-se a "Ordem da Libertação" e uma condecoração para homenagear as pessoas ou associações, civis e militares, que se destacaram na tarefa de libertação da França. A insígnia é uma espada sobre uma Cruz de Lorena preta, com fita verde e preta, simbolizando o luto da França e a esperança.


A adoção da insígnia como representação da luta contra a tuberculose trás esta historia e estes valores: luta, resistência, heroísmo, empenho e um pouco de transcendência mística. Para Canguilhem (2009) a doença é “uma reação generalizada com intenção de cura”, no caso em tela, a utilização de uma simbologia com raízes bélicas indica que o caminho para se chegar à intenção final passa por uma arregimentação semelhante à utilizada em batalhas e outras manobras militares, onde o fundamental para ajudar o paciente era” delimitar e determinar seu mal” (SYDENHAM apud CANGUILHEM, 2009). Já Susan Sontag (1989) explora largamente a idéia de “metáforas militares” na utilização de estratégias de combate a proliferação de algumas patologias. Para a autora tais metáforas “contribuem para a estigmatização de certas doenças e, por extensão, daqueles que estão doentes.” A cruz já serviu de ícone para várias causas, a maioria ligada à salvação, no sentido de redenção superior para alguém ou um grupo em dificuldade. Também serve como elemento de identificação de diversos grupos com trabalho de caridade, bem como proteção em empreitadas rumo ao desconhecido como a Cruz de Malta que era ostentada nas caravelas que desafiavam os oceanos rumo ao novo mundo.


A tuberculose, assim como outras doenças, foi encarada de um modo idílico e a literatura, a ópera, o teatro e as artes em geral colaboraram para a criação desta imagem, principalmente no século XIX e primeiras décadas do século XX. São inúmeros os escritores, poetas e intelectuais que morreram em decorrência da doença e que no seu processo de adoecimento tiveram diversas produções destacadas e reconhecidas muitas inclusive tratando sobre a doença, ligando a idéia de que a enfermidade serviria como um incremento a mais na capacidade criativa dos artistas. Situação semelhante ocorrera na Franca, no século XIX quando a sífilis atingia ícones das letras como Baudelaire, Flaubert, Maupassant e Daudet e que, em algumas circunstâncias, se declaravam no seu apogeu de sensibilidade e criatividade.

No caso da tuberculose diversos artistas adoeceram e morreram em decorrência da doença antes dos 50 anos como Pergolesi, Tchecov e George Orwell em épocas distintas. No Brasil o “mal dos românticos” vitimou, antes dos 30 anos, nomes famosos como Castro Alves, Álvares de Azevedo, Auta de Souza e Noel Rosa. Interessante observar que enquanto na vida real a doença era ligada a homens boêmios, ligados a festas, que fumavam, bebiam e gozavam as delícias da vida mundana, ligando a doença –numa interpretação rígida- a um resultado dos excessos cometidos, por outro lado, nas artes, muitas vezes, a tuberculose era apresentada em personagens femininos que “amavam demais” como no caso da Dama das Camélias de Alexandre Dumas que serviu também de base para a Violetta Valéry da Traviata de Verdi. Também na obra “Os Maias” do português Eça de Queiros, a tuberculose vitima Maria Monforte que fisicamente é descrita como extremamente bela e sensual, com cabelos loiros, a testa curta e clássica e o colo ebúrneo; psicologicamente era vítima da literatura romântica e daqui derivava o seu caráter pobre, excêntrico e excessivo.


Numa perspectiva histórica nota-se que a doença que se criou no lastro do romantismo assume no início do século XX uma postura bélica comandada pela principal organização internacional que impulsiona os esforços mundiais para o seu controle. Ao propor o uso da Cruz de Lorena, o francês Sersiron lança um novo enfoque sobre o combate da doença. Não se tratava mais de romantizar o tema, mas de exercitar ações de enfrentamento ao mal que se alastrava, e esta nova atitude deveria acontecer sob a égide de um símbolo forte que reunisse os elementos necessários a esta nova fase. Note-se ainda que o início do século XX surge como um marco na proliferação da tuberculose entre as populações mais pobres. A tuberculose já se apresentava como uma doença socialmente determinada, pois sua ocorrência está diretamente associada à forma como se organizam os processos de produção e de reprodução social, assim como a necessidade crescente de implementação de políticas públicas efetivas de controle da doença. Além disto, as mudanças nas estratégias voltadas para o combate à malária passaram a freqüentar mais as páginas de jornais.


Considerando a importância da presença da tuberculose no Brasil, que é o segundo em incidência na América Latina, o financiamento internacional aprovado, a proximidade entre os profissionais de saúde e o movimento social ligados a Aids (tuberculose é a doença que mais mata pessoas soropositivas), a oportunidade de transformar o tema em marca de atuação do atual governo seria um objetivo não apenas ideal, mas plenamente factível.
Com as limitações burocráticas que a máquina estatal possui a utilização dos recursos internacionais do Fundo Global, via os receptores selecionados, seria uma forma ágil de desenvolvimento destas ações e, se esperava de proliferação de novas idéias de mobilização social em torno da doença. Apesar de o projeto ocorrer em locais restritos, sua atuação piloto poderia ser desdobrada posteriormente no restante do país gerando uma resposta social integrada e nacional. Pára estes objetivos as estratégias comunicacionais seriam de importância capital. E neste ambiente que a idéia do catavento foi gestada. Não por coincidência, em visita de vistoria as obras do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), em março de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva usava um boné ostentando o catavento com a inscrição “Brasil sem Tuberculose.”


A origem da figura não possui registro histórico determinado. Há indicações da existência de cataventos na Pérsia, no Iraque, no Egito e na China. Seu funcionamento é simples: formado por um conjunto de pás dispostas lateralmente sobre um eixo horizontal. Cada pá está levemente torcida (como uma hélice). Assim, o fluxo de ar, buscando o caminho mais fácil para passar, gera pressão que impulsiona cada pá para um mesmo sentido em relação ao eixo horizontal. Primeiramente era utilizado como mero indicador da direção do vento, mais tarde passou a produzir trabalho e energia, utilizando no bombeamento de água, na produção em moinhos e, mais recentemente, na produção de eletricidade com a forca da energia eólica. Seu desenho tem servido como símbolo para o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, 12 de junho, escolhido pela OIT (Organização Internacional do Trabalho). A associação do catavento com a causa da tuberculose possui dois vértices de ação. A primeira esta ligada diretamente a atitudes de circulação do ar, o que impede a transmissão do bacilo que causa a tuberculose. O aglomeramento urbano, a falta de aberturas nos cômodos, o acúmulo de pessoas num mesmo espaço são inimigos da circulação ampla de ar e, por consequência, favorecem a contaminação da TB.

A ideia, simples a principio, é de que na medida em que o catavento circule as pessoas atingidas lembrem-se da necessidade de se fazer circular ar nas residências e locais de aglomeração impedindo o crescimento de novos casos. Ou seja, é uma tentativa de transformar um saber científico em atitude, através da comunicação como mediador desta situação, adaptando a linguagem e agregando fatores de fácil identificação com a população mais atingida pela realidade. No dizer de Maria Nélida Gonzáles de Gomes (2001), se revela a construção de conhecimento a partir de um processo de conhecimento de outros conhecedores. O saber médico indica a medida de prevenção, o conhecimento comunicacional mapeia a melhor maneira de transmiti-lo a população e esta, por sua vez, recebe o produto deste trabalho e o resignifica dentro do seu cotidiano utilizando-o através de formas a inseri-lo como apoio para mudança de comportamento.


A segunda ideia é mais complexa, mas igualmente tem sentido relacionado ao movimento. Quer-se através da circulação que a figura do catavento evoca incentivar o movimento social para que, de forma organizada, as pessoas possam se inserir e apresentar sugestões de enfrentamento da tuberculose tanto em ações de prevenção, como nas de adesão o tratamento (ponto nevrálgico para a cura) e de apoio as pessoas afetadas contra atos de discriminação ou preconceito. O colorido do catavento, utilizado na campanha, se relaciona a este último item querendo na sua diversidade ilustre a gama de pessoas que podem ser atingidas pela doença e os que podem, através de ações de apoio, se unir no seu controle. Quando o catavento gira e as cores “se misturam” resulta o branco como identificação universal de paz ou da concórdia.
Através desta descrição ilustrativa se identifica que a campanha brasileira quer ser interdisciplinar, no sentido de fazer com que várias áreas de conhecimento se comuniquem umas com as outras, confrontando e discutindo suas perspectivas (POMBO, 2004), ultrapassando as barreiras que as afastam. O resultado desta idéia de integração ainda não foi suficientemente avaliado.

ATRASO NO DIAGNÓSTICO DA TUBERCULOSE EM SISTEMA
PRISIONAL: A EXPERIÊNCIA DO DOENTE APENADO

Autores: Káren Mendes Jorge de Souza, Tereza Cristina Scatena Villa, Filomena Elaine Paiva Assolini, Aline Ale
Beraldo, Uthania de Melo França, Simone Terezinha Protti, Pedro Fredemir Palha.

 

RESUMO: O estudo analisou as causas de atraso no diagnóstico da tuberculose em sistema prisional, segundo a experiência do doente apenado. Utilizou-se o referencial teórico-metodológico da análise de discurso de matriz francesa, que busca a compreensão dos processos de produção de sentidos, na relação da linguagem com a ideologia e de constituição de sujeitos em suas posições. Foram realizadas entrevistas semidirigidas com sete doentes de tuberculose apenados em um hospital de João Pessoa, Paraíba, Brasil, no período de agosto a outubro de 2009. O atraso no diagnóstico da tuberculose relaciona-se à naturalização da desassistência ao sujeito preso, à interpretação do presídio como um lugar de morte e sofrimentos e à privação do direito à saúde para detentos em decorrência de sua posição nas relações assimétricas de poder e efeitos ideológicos.

INTRODUÇÃO

A ocorrência da tuberculose (TB) em presídios, como um problema de saúde pública, apresenta expressiva magnitude. Estudos sobre a saúde da população encarcerada no Brasil, que são poucos, mostram que a crescente taxa de ocupação
prisional, sem a concomitante adequação de estrutura física e de recursos humanos, somada às condições precárias de higiene, ventilação e iluminação solar nas celas, compõe um cenário frequente no sistema prisional. Esta situação produz
riscos para o adoecimento de detentos e cria condições favoráveis à infecção pelo Mycobacterium tuberculosis, além da disseminação da TB. Uma revisão sistemática acerca da incidência da TB em prisões, incluindo vinte e três estudos de
diversas regiões do mundo, conclui que a transmissão da TB na população prisional é maior do que aquela relacionada à população geral local. A prevalência da TB entre presidiários pode ser até cinquenta vezes maior que as médias nacionais.
Na Europa, estima-se que, em média, a proporção de TB entre presos para a TB na comunidade geral seja de 15:01. Agrava este problema o fato de presídios funcionarem como reservatórios para a TB multidrogarresistente (MRD-TB).

As dificuldades para o desenvolvimento de ações de saúde em presídios, principalmente no campo preventivo, são de ordens diversas. No que concerne aos obstáculos para o controle da TB nestes locais, nota-se que existem peculiaridades sociais e psicológicas relacionadas à organização e funcionamento da instituição prisional, ressaltando-se a subvalorização dos sintomas da doença, a inadequação de Programas de Controle da TB à população carcerária e as dificuldades de acesso à assistência de saúde, decorrentes da priorização da segurança, pelas autoridades penitenciárias, em detrimento da saúde.

Considerando que as penitenciárias são importantes na origem e transmissão da TB, sublinha-se a importância do diagnóstico precoce como estratégia para o controle da doença na população carcerária. Falhas neste processo implicam prejuízos – ao doente: complicações clínicas e resistência medicamentosa; à comunidade: exposição ao bacilo; e ao Estado: a administração de um quadro complexo e oneroso. No presente estudo, considera-se atraso no diagnóstico da TB, atribuído ao doente, um tempo superior a trinta dias decorridos entre o início dos sinais e sintomas e a primeira consulta médica para o diagnóstico, tomando por base categorias apresentadas em produções científicas. Contextualizando a problemática do controle da TB em sistema prisional e considerando as condições de produção da experiência do adoecimento em presídios, este estudo propõe analisar as causas de atraso no diagnóstico da TB em sistema prisional, segundo a experiência do doente apenado.
 

A partir da observação das lacunas do conhecimento científico relacionado a essa temática, a presente pesquisa mostra-se relevante por explorar discursos circulantes no espaço prisional ligados ao processo saúde-doença, à TB e ao acesso para diagnóstico, analisando – segundo o referencial teórico-metodológico da Análise de Discurso (AD) de matriz francesa – a materialidade linguística e as redes de sentidos às quais os doentes de TB, na posição social de detento, se filiam. A AD estuda os efeitos de sentidos entre os interlocutores e se sustenta sobre três regiões do conhecimento: o Materialismo histórico, estando aí situada a concepção teórica de ideologia; a Linguística, particularmente com a noção de materialidade do significante; e a Psicanálise, incorporando a compreensão lacaniana de que o inconsciente é estruturado como linguagem. A apropriação da AD para esta investigação é uma proposta inovadora, que permitirá novas compreensões sobre a (re)produção de discursos institucionalmente legitimados em presídios. Trata-se de um referencial profícuo para analisar como as causas de atraso no diagnóstico da TB estão investidas de significância para e por sujeitos na posição de presidiários. Os resultados poderão contribuir para o debate de políticas públicas voltadas às necessidades desta população em situação de vulnerabilidade e orientar práticas de saúde e Enfermagem relacionadas à assistência ao doente acometido por TB em instituição prisional.

MÉTODO


Trabalhando com as relações entre os múltiplos discursos que permeiam a vida nos presídios e com os processos de significação, associados ao atraso no diagnóstico da TB em instituição prisional, esta pesquisa fundamenta-se no referencial teórico-metodológico da análise de discurso de matriz francesa. A pesquisa foi realizada em uma instituição hospitalar de referência para o tratamento da TB no estado da Paraíba, Brasil. Participaram do estudo sete doentes de TB apenados, em internação hospitalar, maiores de dezoito anos, que informaram terem transcorridos trinta ou mais dias entre o início dos sinais/sintomas da doença e a realização da primeira consulta para o diagnóstico. Este critério apoia-se em estudos científicos que apresentam uma definição para o atraso no diagnóstico da TB atribuído ao doente.

Mediante acesso ao sistema de informação de internação hospitalar, identificamos quais doentes estavam na condição de presidiários e, por conseguinte, constituíram a amostra do estudo os que, no período de coleta de dados, estavam em tratamento no setor, atendiam ao critério amostral citado e aceitaram participar da pesquisa. Para a geração de dados, foram realizadas entrevistas semidirigidas,1gravadas, no período de agosto a outubro de 2009. Após transcrição integral das mesmas, organizou-se um banco de dados com uso do software Atlas.ti versão 6.0, mediante a criação de uma Unidade Hermenêutica (Hermeneutic Unit). Na apresentação das falas, utilizou-se uma codificação para garantir o anonimato dos sujeitos do estudo. As entrevistas foram realizadas nas enfermarias sob escolta policial e norteadas pelas seguintes questões: O que o(a) sr(a) costuma fazer quando adoece?; O que o(a) sr(a) sentiu que fez com que procurasse o serviço de saúde?;  Conte-me o que aconteceu desde o início da doença até sua ida ao primeiro serviço de saúde; e Fale-me sobre o caminho que o(a) sr(a) percorreu pelos serviços de saúde até descobrir que tinha tuberculose.

No dispositivo de análise, trabalhando-se com a descrição e interpretação inter-relacionadas, investe-se na opacidade da linguagem, na manifestação da ideologia, na produção de sentidos e na constituição dos sujeitos histórico-sociais e seus gestos de interpretação. Partindo da premissa de que os mecanismos enunciativos são construções discursivas com efeitos de caráter ideológico, a construção do dispositivo de análise foi orientada pelas seguintes passagens (ou etapas): Da superfície linguística para o discurso; Do objeto discursivo para a formação discursiva; e Do processo discursivo para a formação ideológica. Como resultado, tem-se dois blocos discursivos, que reúnem fragmentos correlacionados de fala e situação, discursivamente relacionados ao atraso no diagnóstico da TB. Para o desenvolvimento deste estudo, foram respeitados os princípios éticos da pesquisa envolvendo seres humanos contidos na Declaração de Helsinki e Resoluções nº 196/96 e nº 251/97 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto que deu origem a este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro de Ciências da Saúde, da Universidade Federal da Paraíba, em 17 de dezembro de 2008, com número de protocolo 0589.

RESULTADOS E DISCUSSÃO


O dispositivo analítico compõe-se por sequências discursivas de referência, com destaques em sublinhado, em dois principais blocos, os quais reúnem formações discursivas relacionadas e interpenetradas, a saber: A TB nas penitenciárias:
a saúde aprisionada e; Atraso no diagnóstico da TB: vivências do doente apenado. Todos os sujeitos do estudo são do sexo masculino e apresentam idade entre 30 e 39 anos. Em relação à escolaridade, cinco apenados têm ensino fundamental incompleto, um tem ensino médio incompleto e um não tem escolaridade.

A tuberculose nas penitenciárias: a saúde aprisionada. Se a experiência da doença é a vida social (produzida, internalizada e reelaborada pelos sujeitos sociais) que envolve os atores do universo da doença, compreende-se que as instituições prisionais, ao produzirem uma atmosfera redutora de comportamentos qualificados pela autonomia, imprimem características específicas às vivências do doente apenado.

Um sujeito do estudo diz: procuro uma assistência, um médico, mas aonde eu vou? No lugar que eu tô [presídio] não tem assistência. É só lugar de sofrimento, de aperreio. A gente passa fome, a gente sofre, a gente é torturado, a gente apanha; que é o presídio, que é o lugar pior que tem. Esse relato expressa uma experiência de angústia, frustração, violência, privação e sofrimento. Como acontecimento discursivo, ele revela uma violência institucional, incluindo as diversas formas de violência simbólica sustentada nos presídios. A vigilância, o controle e a punição nas prisões produzem efeitos de sentido, relacionados à repressão e à disciplina sobre os corpos desses sujeitos, suas vidas, seus gestos de interpretação, seus discursos. A ausência de cuidado e as linhas de poder e tensões circulantes no ambiente prisional produzem, no dizer desse sujeito, o sentido de interpretação do presídio como “o lugar pior que tem”.

As situações de encarceramento produzem características psicossociais que geram efeitos sobre a formação dos sistemas de representação, ligados à vida nos presídios e, particularmente, na situação de doença, relacionados à valorização dos sintomas, a busca por assistência, ao uso da medicação e, de maneira geral, às práticas e concepções de saúde-doença. Um participante do estudo relata: o que eu penso mais é quando eu ficar bom aqui [no hospital], que vou ter que voltar lá [presídio] pra passar uns dias e eu peço a Deus muito que isso não aconteça [...] porque eu vou conviver no meio de quem tá doente lá. Essas mesma pessoa que eu deixei doente lá tem muitos deles que tão lá doente e eu vou ter que voltar pra encontrar eles de novo. A rede de sentidos, à qual este sujeito do estudo se filia, está materializada linguisticamente por meio dos significantes “lá” e “aqui”. Enquanto o presídio é identificado como um espaço permanente de produção de doenças físicas e emocionais, o hospital é interpretado como o lugar do bem--estar, da cura, do cuidado, embora ambos atuem com mecanismos de poder disciplinador.


Um sujeito relata: tem uma cela que é apropriada para doze detentos. Então, só nessa cela estão tudo com essa enfermidade [TB] que me encontro. A cadeia tá cheia de tuberculose. Um estudo, ao analisar a gerência das ações de controle da TB em municípios do interior do Estado de São Paulo, Brasil, insere no contexto dessa problemática o desinteresse de gestores municipais pelas políticas e estratégias de controle da TB. Partindo desta perspectiva, acredita-se que a pouca visibilidade política da doença, sustentada ideologicamente, contribui para as ações incipientes de combate da mesma na população encarcerada, considerada prioritária pelo Ministério da Saúde. A permanência da TB em presídios pode, culturalmente, produzir sentidos relacionados à percepção do adoecimento, mediante o espaço de socialização dos detentos, acometidos ou não pela doença. Esta compreensão constrói-se pela análise discursiva dos seguintes dizeres: eu acho que peguei dos outros. No lugar em que me encontro [presídio] tem muito doente, destacando a percepção de transmissão da TB; pelo que via muito lá, [presídio] doente vindo pra o hospital se tratar, eu já sabia que eu era tuberculoso, porque eu via o exemplo de muitos lá doente, evidenciando a interpretação do sujeito doente para a identificação da doença.

Expressa-se aí a memória discursiva sendo atualizada na experiência e dizer destes sujeitos. Na internalidade da instituição prisional circula o interdiscurso, que afeta o perceber e produzir uma opinião sobre os sinais e sintomas da TB, o lugar adequado para o tratamento e o modo de transmissão da doença. Um sujeito do estudo descreve suas observações: tem muitos [doentes de TB apenados], é porque tem que vir [para o hospital] aos poucos, tem muitos com essa mesma doença minha lá. Aí não pode vir direto, tem que vir aos poucos, de um em um, de dois em dois, porque é muito preso, é mais de mil preso ou é quase mil preso. Identifica-se que há um fluxo de saída do doente de TB apenado para tratamento hospitalar que parece ser estabelecido por regulações perceptíveis, porém não explicitadas pelo apenado. O acesso do doente de TB apenado ao diagnóstico e tratamento da doença estão interpenetrados pela administração de sentidos do adoecer produzida pelos sujeitos da instituição prisional. Nesse espaço de embates, resistências, negociações de sentidos e linhas de força, circulantes dentro e fora da instituição prisional, o dizer do apenado de que não pode ser indisciplinado, ter mau comportamento, mas tendo doente tem que vir, é obrigação, é ordem do juiz expressa a força do sentido de disciplina (proibição) no sistema prisional e, ao mesmo tempo, a legitimação do papel do poder judiciário na administração dos gestos de interpretação, produzidos no contexto da regulação do acesso do doente de TB apenado à assistência de saúde.

A denúncia das mínimas condições de tratamento no presídio faz emergir questões éticas e políticas relacionadas ao direito à saúde desta população. Nas prisões de vários países, a saúde ainda não é considerada um direito do detento, mas uma concessão da administração penitenciária. Falhas no diagnóstico precoce da TB podem resultar em aumento da taxa de mortalidade da doença, bem como implicar no desenvolvimento de urgências clínicas, que elevam a taxa de internação hospitalar por TB. Relata um sujeito: [...] na realidade, eles só trouxeram pra cá [hospital] porque o meu caso foi sério e, se não fosse isso, eu tava lá até hoje lá, sofrendo com essa doença. Esse relato apresenta um aspecto importante: a priorização do acesso ao tratamento da TB para o apenado que apresenta um estado clínico agravado. Ressalta-se que a administração penitenciária valoriza este agravamento clínico de tal forma que, antes disto, há uma espécie de apagamento da experiência da doença.  

Um sujeito do estudo relata: quando os guarda penitenciário entrava no pavilhão, contava a minha situação, mas não dava nem ouvido. E eu mal, mal, doente. Os sentidos relacionados a uma aparente naturalização do consentimento para a desassistência ao doente de TB preso nascem de formações imaginárias, produzidas e (re)significadas no espaço social, que imprimem no imaginário coletivo a noção de que o presídio é um lugar de punição e sofrimento constante. Analisando a fala de um sujeito: logo no começo, procurei atendimento médico. Como eu sou um prisioneiro, não é muito fácil, encontram-se reflexos da formação discursiva, que relaciona a redução do direito à saúde do sujeito doente como consequência da posição que o mesmo ocupa no presídio. Outro sujeito diz: [...] no canto em que me encontro [presídio] fica tudo mais difícil pra mim. O meu medo todinho de ficar doente é esse. Esta fala também traz um sentido dos obstáculos impostos ao doente de TB preso em consequência de sua posição no espaço social que se encontra.

O lugar que afeta as condições de produção desse dizer é um “canto” singular. Numa visão mais local, pensa-se em relações de hierarquia e submissão entre os detentos e destes com os profissionais da administração penitenciária, além de espaços pouco salubres e descuido em toda parte. Pensando em condições de produção mais amplas, para compreender o “canto” do qual fala este sujeito, tem-se todas as características de vigilância, disciplina e punição sustentadas historicamente nas instituições penais. Na prisão, as diversas representações e práticas relacionadas à vida, à saúde e aos riscos envolvidos no dia a dia, resultantes de múltiplos discursos e práticas, inserem-se numa lógica peculiar que rege e organiza a vida nesta instituição. Outro sujeito do estudo relata: foi difícil para chegar até aqui [hospital] [...] ninguém acreditava que eu tava doente. Até eu fiquei sabendo que o vice-diretor disse que não tava doente [...] porque eu sou um homem assim, eu suporto as minha dor. Mesmo doente, eu fico suportando ali, fico suportando, fico pedindo a Deus. Então ele achou que eu não tava doente. Percebe-se aí, não pela transparência das palavras, que este sujeito reconhece em si a doença, mas o julgamento do vice-diretor, investido de poder, ao não reconhecer a doença do sujeito detido, produz um apagamento e administra sentidos na esfera da experiência da doença. Ficar suportando a dor traduz um silenciamento do  dizer deste sujeito, considerando as hierarquias existentes na unidade penitenciária, as relações de poder circulantes e a administração de gestos de interpretação do doente de TB apenado.

Suportar a dor pode traduzir a significação da força exigida no espaço social das penitenciárias e a identidade de sujeito desejada. Suportar e ao mesmo tempo rogar a Deus parece referir-se a uma contradição presente no calar aquilo que se quer dizer. Considerando o sistema de dominação, os confrontos no espaço penitenciário e as condições de produção do apagamento de sujeitos detidos, algumas relações de intercessão são estabelecidas. Este é um sentido produzido pela seguinte fala: um enfermeiro que tem lá na cadeia deu uma palavra por mim, contou a minha situação à direção, então a direção veio até mim, viu a minha situação e me trazeram no hospital. Nesta situação de silenciamento dos direitos do detento doente por TB, o sujeito, reconhecido pelo apenado como enfermeiro, torna-se o porta-voz do doente. As assimetrias de poder aí presentes distanciam, cada vez mais, o doente de TB preso do protagonismo em seu processo saúde-doença. Percebe-se que os sentidos atribuídos ao estar doente ou não, bem como à regulação do acesso ao diagnóstico e tratamento da TB, são administrados pelos sujeitos que exercem a vigilância e disciplina na instituição prisional ou fora da mesma. Atraso no diagnóstico da tuberculose: vivências do doente apenado Em se tratando da temática do atraso no diagnóstico da TB em sistema prisional, é preciso considerar as diversas particularidades que emergem das relações e do modo de organização da vida nestas instituições – analisadas no bloco discursivo anterior.

A percepção e denotação da TB como um mal-estar físico e psíquico, bem como a busca por recursos terapêuticos, é sempre um processo interpretativo do sujeito doente em relações de interação social. Portanto, dimensões pessoais e sociais, enredadas ao adoecer por TB em unidades prisionais, são mobilizadas em sistemas simbólicos, nos quais participam o intradiscurso e o interdiscurso. Um doente de TB apenado relata: bom, de imediatamente nós procuramos alguns medicamentos que venha dar uma solução pra a doença de imediato. Mas, se nós não sabemos o diagnóstico da enfermidade, nós não vamos conseguir comprar o medicamento pra isso, né? [...] caso eu tomando o medicamento e se eu não ver nenhuma, vamos dizer assim, não melhorar, aí eu tenho que procurar outros meios que me leve a identificar realmente o que eu estou sentindo. Outro sujeito diz: eu busco pra ficar bom, primeiramente, a fé, então se você tem a fé, busca aquelas palavras de conforto, que o Senhor dá. Os dois fatos linguísticos geram sentidos relacionados à interpretação, permeando o acionamento de estratégias de autoatenção, as quais precedem a entrada destes sujeitos no sistema formal de saúde. No que concerne à relação entre a automedicação e o atraso no diagnóstico da TB, um estudo desenvolvido na Etiópia revela que os pacientes que visitaram inicialmente serviços de saúde não formais e os que se automedicaram tiveram uma demora maior para o diagnóstico da TB, atribuído ao doente, em comparação com aqueles que foram diretamente para serviços de saúde formais.

Considerando os modelos de atenção às enfermidades, destaca-se que há uma intensa e constante relação entre as atividades biomédicas e as práticas de auto atenção (principalmente a automedicação) – uma articulação comumente ignorada pela Biomedicina. Ocorre que, se por um lado a medicina estimula o autocuidado, por outro, práticas como a automedicação são fortemente ignoradas, gerando um efeito paradoxal. Outro estudo, desenvolvido no sul da Tailândia, afirma – acerca do efeito de utilização de farmácias sobre o atraso do diagnóstico da TB – que a farmácia foi o local mais comum da primeira visita do doente após o início dos sintomas (43%); até 12% dos doentes que se automedicaram e aqueles que recordavam detalhes dessa visita informaram que os medicamentos recomendados foram antitussígenos, mucolíticos, broncodilatadores e antibacterianos, mas nenhum citou a indicação de tuberculostáticos. No primeiro relato expressa-se também o imediatismo como característica marcante na busca por alívio sintomático frente a TB. Esse sentido
tem relação com o paradigma tecnocrático vigente no campo das ciências da saúde, segundo o qual intervenções com ênfase em resultados em curto prazo são privilegiadas e descrevem uma poderosa força motivacional, chamada de “imperativo tecnocrático”. O dizer [...] se nós não sabemos o diagnóstico da enfermidade nós não vamos conseguir traz um sentido de sobreposição do saber médico, materializado no esclarecimento diagnóstico, ao saber popular.

Os efeitos de sentido advindos do discurso biomédico centralizam a ação médica no diagnóstico das doenças, hipertrofiando a diagnose e gerando processos de apagamento e desindividualização dos sujeitos doentes, cada vez mais, vistos como unidades homogêneas. Sobre a percepção do adoecimento por TB e busca por recursos de diagnóstico, um sujeito diz: no início, eu não sabia realmente que eu tava doente e que era tuberculose. É, eu ficava curioso para saber o que era, entendeu? E a partir do momento em que eu fui piorando, cada vez mais, eu procurei. Foi lá no presídio, falei com o médico e o médico também não soube explicar o que era. Aí foi quando eu passei três dias colocando sangue pra fora, aí eles me levaram, trouxeram para o hospital. Quando chegou aqui, que foi diagnosticado que eu tava com a tuberculose. Como um acontecimento discursivo, a procura por uma assistência médica motivada pela percepção de um estado clínico grave pode sustentar-se em formações discursivas atualizadas na incorporação do modelo tecnocrático, que atribui destaque à medicina curativa.

Os sentidos aí presentes estariam colonizados por uma lógica eminentemente economicista, expressada no elevado consumo de máquinas, equipamentos e instrumentos, usados como os principais recursos de diagnose e terapia. Produzindo deslizamentos de sentidos a partir da ideia “óbvia” de que o diagnóstico da TB em presídios é mais fácil, por estarem todos os presos ao fácil “alcance” das intervenções de saúde, compreende-se que os obstáculos para a detecção de casos da doença no sistema prisional são múltiplos. Pode-se destacar, principalmente, a subvalorização de sinais/sintomas da TB num ambiente violento, onde a preocupação com a sobrevivência é prioritária. Além disto, o risco de estigmatização e segregação estão presentes, considerando a importância da proteção gerada pelo pertencimento grupal e a fragilidade decorrente do reconhecimento da doença em um ambiente onde a imagem de força é fundamental.

No relato anterior, a hemoptise, como prova exteriorizada de um estado clínico grave, funciona como um fator de priorização, usado pelas autoridades penitenciárias para o acesso do doente de TB apenado à assistência de saúde hospitalar. Registra-se também que o profissional de saúde, que recebe este doente no presídio, não desenvolve uma investigação clínica adequada. A associação desses fatores é potencialmente favorável à ocorrência de atraso no diagnóstico da TB, bem como ao aumento do risco de óbito pela doença.

Autores afirmam que o retardo do diagnóstico da TB atribuído ao médico pode mostrar o nível de conhecimento sobre a doença entre profissionais da saúde e a eficácia do Programa de Controle da TB para o diagnóstico precoce. Em relação ao manejo inadequado da doença e à desqualificação da interação entre o profissional da saúde e o paciente para a efetividade do diagnóstico da TB, compreende-se que é importante, no sistema penitenciário, investir na contratação de recursos humanos qualificados, no desenvolvimento de busca ativa de sintomáticos respiratórios, na prevenção e tratamento de co-morbidades, implantação de Tratamento Diretamente Observado (TDO) para a TB, bem como outras ações relacionadas com a vigilância à saúde. Um sujeito do estudo relata: não era um posto de saúde. Era um hospital. Uns médico que eu fui duas, três vezes, até quatro vezes, eles falavam ‘ah, isso é gripe. Isso é dor de cabeça´, sempre passavam uma elaboração, uma injeção e me mandava, encaminhava pro presídio e eu fui enfraquecendo [...] os exames [para diagnóstico da TB] que eu fiz, todos, todos, nenhum chegou pra mim ver [...] Só falavam [os médicos] mesmo ‘não, tá bem’, ‘não, tá melhor’, ‘vá pra, vá pro presídio. Quando chegava no presídio, tava doente de novo. Cada dia que se passava, eu arriava, voltava. O médico, de novo [...] “você não tem nenhum problema’.

Essa negação da experiência da doença do sujeito presidiário é mais uma forma de apagamento presente em uma instituição de vigilância, controle e confronto de forças. Encontra-se nesse fato linguístico um sentido expressivo de subordinação do reconhecimento da doença ao saber médico. Não existem aí processos de empowerment do doente de TB apenado com a finalidade de desenvolver o protagonismo do mesmo no desenvolvimento do projeto terapêutico. Sobre a assistência de saúde nos presídios ao doente de TB, um sujeito diz: [...] ele [o médico] vai, tipo, conformando você com remédios que não tem nada a ver, comprimidos. A tuberculose não tem comprimido certo em presídio, primeiramente pra você tomar esses comprimidos tem que passar pelo médico e lá eles me davam dipirona, Anador®, muito antiinflamatório [...]. Mas quando eu vim fazer os exames constou conscientemente a tuberculose. Esse relato expressa fragilidades na assistência ao doente de TB apenado em questões de diagnóstico. A conformação exercida pelo médico sobre o doente revela o sentido de poder-saber que a biomedicina, legitimada socialmente, detém e administra, valendo-se do mesmo para a produção crescente de medicalização da vida humana e das relações de assujeitamento inscritas em formações históricas e discursivas específicas. O dizer a TB não tem comprimido certo em presídio expressa a inadequação do tratamento da TB dentro do sistema prisional – um gesto de interpretação reforçado pelo sujeito, quando o mesmo afirma que, após a realização de exames fora do presídio, a TB foi diagnosticada adequadamente e, nos dizeres do sujeito, “conscientemente”. Assim, o sujeito do estudo não identifica o presídio como o lugar do diagnóstico “consciente” da TB.


As dificuldades para o doente de TB apenado ter acesso ao diagnóstico e tratamento da doença são de ordens diversas. Um sujeito relata: eu pedi ao diretor pra vir pra o hospital. Mas, só que foi muita luta. Eu passei mais de seis meses pedindo pra conseguir vim [pro hospital] [...] [após ter realizado exames] voltei pra lá de novo. Aí depois pra mim conseguir voltar pra cá foi uma luta de novo. Foi mais uns três meses pedindo. Outro fala: [...] eu vim conseguir tratamento agora, depois de cinco meses. Outro sujeito também expressa as dificuldades enfrentadas: [...] foi difícil para chegar até aqui [hospital], porque como eu estava muito doente, eles alegava viatura, alegava que não tinha custódia para ficar comigo aqui. Nesse contexto, percebe-se que as formações discursivas, que circulam no imaginário das pessoas ligadas à vida social nos presídios, estão permeadas por sentidos relacionados a uma elevada carga de dificuldades, sofrimentos e penas para o presidiário. Neste universo, onde o dizer do detento é interditado, considerando a posição social que ocupa, relações de cuidado são mobilizadas, envolvendo outros atores e papéis.

Um sujeito do estudo fala sobre esta questão: no mesmo dia que vomitei sangue eu fui diretamente ao portão do presídio, chamei o agente e falei pra ele: agente eu estou passando mal porque eu tô vomitando sangue. Então, ele me levou até a direção. Outro diz: era obrigado os agentes dizer, contar a minha situação, o enfermeiro, os demais que se encontrava comigo dentro do pavilhão dizer que eu tava doente. Contar a minha situação. Ocorre que – diz outro sujeito: o enfermeiro do presídio, nem é enfermeiro mesmo, é enfermeiro preso, igual a eu. Que aquele era um que tem leitura. As causas de atraso no diagnóstico da TB em sistema prisional são diversas, mas todas contextualizadas na experiência do adoecimento em uma instituição disciplinar, redutora de autonomias, bem como em formações discursivas que definem papéis (por construção social) e motivam visões acerca dos sujeitos no interior da rede penitenciaria ária. O trabalho de colocar o dito em relação ao não dito dos doentes de TB apenados é bastante revelador para uma compreensão profunda da problemática aqui abordada.

 

CONCLUSÃO

​​

O dispositivo analítico do estudo destaca as condições de produção do dizer (e não dizer) do doente de TB apenado no que se refere às causas de atraso no diagnóstico da TB. Ao contextualizar estes fatores em formações discursivas circulantes no
espaço social, em referência à instituição prisional, empreende-se um deslocamento da identificação para a compreensão das referidas causas. Aos sujeitos do estudo priva-se, mediante regulações, o direito constitucional à saúde e, nas unidades prisionais, processos de assujeitamento são constantemente produzidos no cotidiano vivencial dos doentes de TB apenados.

A punição e a vigilância nas prisões geram sentidos de repressão e disciplina sobre a materialidade linguística do doente de TB apenado. O presídio é identificado como um lugar de morte, de sofrimentos, de preocupações. Ao hospital,
por sua vez, atribui-se a representação de lugar da vida, da saúde, do cuidado. O processo regulatório do acesso do doente
de TB apenado às práticas assistenciais para o diagnóstico da doença revela linhas de poder e administração de gestos de interpretação dentro da realidade social das penitenciárias.

O estudo sustenta que a saúde, como um direito do cuidado ético-humano e de cidadania, quando simbolicamente aprisionada, produz o cenário no qual se firmam as causas diversas de atraso no diagnóstico da TB. Considerando as ações de diagnóstico da TB em presídios, o estudo sugere avanços nas ações de busca de sintomáticos respiratórios, com sentido de vigilância, que possibilitem o diagnóstico precoce da TB em penitenciárias, somados a melhoria da qualidade da assistência de saúde nos presídios e da articulação com outros serviços da rede de saúde.

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